Em meio ao caótico trânsito do Município de São Paulo, o transporte remunerado de passageiros por motocicletas via aplicativo surge como uma solução prática e ágil para a mobilidade urbana. No entanto, essa atividade tem gerado intensos debates jurídicos e sociais, especialmente após a publicação do Decreto Administrativo n. 62.144/2023, que proíbe temporariamente o serviço na capital paulista.
Diante desse cenário, surge uma questão central: pode um ato administrativo municipal regulamentar o transporte remunerado de passageiros por motocicleta via aplicativo, contrariando uma Lei Federal e princípios constitucionais como a livre iniciativa e a livre concorrência?
Essa problemática não apenas envolve a segurança viária e a saúde pública, mas também coloca em xeque os limites da autonomia municipal frente às normas federais e constitucionais.
Qual a problemática de transporte remunerado por motocicletas em aplicativo?
Além disso, há um forte componente social: muitas das pessoas que optam pelo transporte em motocicletas são aquelas que não possuem veículo próprio e, portanto, não detêm grande poder financeiro. Para elas, essa modalidade representa uma opção acessível e eficiente de locomoção, especialmente em uma cidade com deficiências crônicas no transporte público.
De início, antes de adentrar a fundo na problemática, é de suma importância definirmos o que é um decreto administrativo. O decreto administrativo nada mais é que um ato normativo emitido pelo chefe do Poder Executivo (seja no âmbito federal, estadual ou municipal) para a fiel execução da lei.
O decreto administrativo não pode inovar o ordenamento jurídico nem contrariar normas hierarquicamente superiores, devendo ser utilizado apenas para regulamentar e complementar leis já existentes. Caso contrário, há risco de violação ao princípio da legalidade, especialmente em contextos em que não se aplicam decretos autônomos, que possuem natureza excepcional e requisitos específicos para sua validade.
Todo decreto administrativo deverá fundamentar os motivos para a sua aplicação, bem como, poderá atribuir efeitos sancionatórios para aqueles que descumprirem seus comandos.
No caso do Decreto Administrativo n. 62.144, a finalidade do Prefeito de São Paulo ao publicá-lo seria reduzir os índices de mortalidade no trânsito da capital, utilizando como mecanismo coercitivo para a implementação da medida a aplicação de multas na esfera administrativa, e caso necessário, indenização por danos morais na esfera cível, e imputação de crime na esfera penal.
Nesse sentido, o referido ato administrativo serve como um mecanismo coercitivo para diminuir a sobrecarga no sistema de saúde causada por acidentes de trânsito, que demandam atendimentos de emergência, internações e tratamentos de reabilitação, gerando custos elevados para o Município de São Paulo.
Lado outro, para satisfazer os objetivos do referido decreto, o Município de São Paulo acabou ignorando os dispositivos da Lei Federal n. 12.587/2012 – Política Nacional de Mobilidade Urbana. Tal legislação, estabelece que os Municípios e o Distrito Federal possam regulamentar e fiscalizar o transporte privado individual de passageiros por aplicativo, porém não proíbem a sua circulação.
Atrelado a esse fato, o Supremo Tribunal Federal, por intermédio do Tema 967 (RE 1.054.110) entendeu que “a possibilidade de intervenção do Estado na ordem econômica para preservar o mercado concorrencial e proteger o consumidor não pode contrariar ou esvaziar a livre iniciativa, a ponto de afetar seus elementos essenciais. Em um regime constitucional fundado na livre iniciativa, o legislador ordinário não tem ampla discricionariedade para suprimir espaços relevantes da iniciativa privada”. Nesse sentido, a proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é considerada inconstitucional.
Como último elemento, mesmo que o cenário municipal exija políticas públicas direcionadas a resguardar a saúde e a segurança no trânsito, tais medidas não devem ser feitas por meio de decreto administrativo, afinal não cabe ao chefe do Poder Executivo impor novas obrigações aos cidadãos, mas apenas regulamentar as matérias previstas na Constituição, sob pena de originar uma aberração jurídica dentro do sistema normativo brasileiro.
Uma alternativa legal e equilibrada para regulamentar o transporte por motocicletas em São Paulo seria a criação de uma lei municipal, aprovada pela Câmara de Vereadores, em substituição a decretos administrativos. Essa legislação poderia estabelecer normas específicas, como limites de velocidade em áreas de risco, restrições a vias perigosas e obrigatoriedade de seguro para passageiros, garantindo segurança viária sem infringir princípios constitucionais ou a hierarquia normativa, assegurando um trânsito mais seguro e organizado.
Nessa senda, é possível concluir que o Decreto Administrativo n. 62.144, embora motivado por preocupações legítimas com a segurança viária e a saúde pública, enfrenta sérios questionamentos quanto à sua legalidade e constitucionalidade. Ao proibir o transporte remunerado de passageiros por motocicletas via aplicativo, o Município de São Paulo extrapolou sua competência regulamentar, contrariando tanto a Lei Federal n. 12.587/2012 – Política Nacional de Mobilidade Urbana – quanto os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência.
Ademais, ressalta-se que a medida impacta diretamente a população de baixa renda, que depende desse serviço como uma alternativa viável de mobilidade.
Portanto, a solução para o impasse não reside em medidas administrativas unilaterais, mas na elaboração de leis municipais que, respeitando os limites constitucionais e federais, promovam a segurança no trânsito sem inviabilizar serviços essenciais à população. É fundamental que o poder público equilibre a proteção da vida e da saúde com a garantia de direitos fundamentais, como o trabalho e a livre iniciativa, assegurando que políticas públicas sejam implementadas de forma legal, democrática e eficiente.
*Otávio Gomides Monteiro é Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Advogado do Gonçalves, Macedo, Paiva e Rassi (GMPR) Advogados.Pós-graduando em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás em parceria com a ESA-GO. Contato: otaviomonteiro@gmpr.com.br.
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